O ex-jogador de futebol argentino Diego Armando Maradona morreu nesta quarta-feira (25) aos 60 anos, segundo confirmado por fontes da família ao EL PAÍS. Uma semana depois de seu último aniversário, o astro foi operado com êxito de um edema cerebral e a Argentina celebrou outro drible de seu heroi dramático. Era o último. Tantos anos de excesso, descuidos e conflitos emocionais terminaram por corroer sua saúde. Se ser Maradona e ter um corpo saudável foi uma luta desigual, em sua última aparição como treinador do Gimnasia aparentou ter um físico de alguém de 80 anos. Os imortais também sofrem.
Nessa imagem, na qual Diego só podia caminhar ajudado pelos seus auxiliares, pareceu concentrar seu histórico clínico: seu velho vício na cocaína; um coração que há vários anos trabalhava em 30%; a obesidade que o atingiu no começo do século, quando chegou a pesar 120 qulos; a bariátrica que fez em 2004; sangramentos estomacais cada vez mais habituais; problemas severos com álcool; algumas operações nos joelhos e a infinidade de pancadas que recebeu na época de jogador, inclusive uma fratura no tornozelo.
Sua morte sacorde a Argentina ― e não só ―, por um colapso de tristeza sem data de vencimento à vista: a angústia que começou a tomar conta das ruas de Buenos Aires e do mundo não será dessas que se dissipará em anos, mas em gerações. A morte de Diego Armando Maradona anuncia o final da era dos heróis. Ídolos, gênios e produtos esportivos sempre existirão, mas Maradona excedeu a condição de jogador: foi um país convertido em número 10, uma reinvidicação popular de shorts e meião, o milagre possível para uma porção do mundo em que o vento sopra contra.
Se o vocabulário da sua fase como jogador girou ao redor de gols, proezas e atos de magia, já aposentado se somou termos como dependência de drogas, problemas cardíacos e respiratórios, hipertensão, apneias, diabetes, anemia, episódios de confusão mental e dificuldades renais. “É evidente que tenho linha direta com o barbudo”, disse em 1997, em referência a Jesus, depois de uma de suas ressurreições habituais.
O futebol será um simulacro da guerra, mas os estádios constituíram para Maradona seu único momento de paz, uma infância eterna. Como se de segunda a sábado se dedicasse à halterofilia, a vida fora dos gramados inevitavelmente pesou. Assim como os zagueiros rivais ficavam diminuídos frente a lenda do futebol, ser Maradona e ter um só corpo foi uma briga desigual. Como ele mesmo disse: “Com um chute fui de Villa Fiorito ao topo do mundo, e lá tive que me consertar sozinho”.
O confinamento com o qual tentou evitar ser infectado pelo novo coronavírus não ajudou Maradona, que passou seus últimos dias em depressão, também explicada pelo hematoma no cérebro detectado em uma clínica de La Plata, a cidade onde ele treinava o Gimnasia. Maradona já estava internado desde 2 de novembro, uma rotina nos seus últimos anos: as clínicas, as viagens de ambulância, as salas de operação e as vigílias dos seus fãs nas portas de centros médicos. Quanto mais sofria o ídolo, mais se esforçavam seus paroquianos.
“Maradona está sempre depressivo, um crônico melancólico”, diagnosticou seu médico na década de 90, Alfredo Cahe. As mortes de seus pais, Doña Tata em 2011 e Don Diego em 2015, foram dois golpes anímicos que terminaram de desestabilizar seu núcleo familiar, catalisando por conflitos com sua ex-mulher, Claudia Villafañe, e até com algumas de suas filhas. O último Maradona, já longe da cocaína, mas com problemas com o álcool, tampouco podia ajudá-lo. O homem das grandes frases já somente se comunicava em público através de comunicados escritos pelos seus porta-vozes, em sua conta do Instagram.
Maradona deu tanto aos seus adoradores que foi como se tivesse oferecido sua vida a eles. Muito mais humano, empático, rebelde e contestador com o poder do que o restante dos ídolos, mas também dependente do carinho popular, se foi cheio de cicatrizes e tomando golpes. Em sua enorme produção de frases, Maradona deixou centenas de menções relativas ao cansaço, à dor e à morte.
Já em 1981, ainda no futebol argentino, o jovem desabafou: “Eu estou cansado, cada dia me saturo mais, não aguento mais. Quero abandonar o futebol. Cumpro o contrato com o Boca Juniors e deixo o futebol por um tempo”. No ano seguinte, poucos meses antes de sua transferência para o Barcelona, disse em terceira pessoal, como se já preferisse olhar-se de fora: “A gente tem que entender que o Maradona não é uma máquina de dar felicidade”. Então tentou diminuir a angústica com a cocaína, à qual recorreu pela primeira vez na Espanha, no final de 1983, durante sua movimentada passagem pelo clube catalão.
Maradona nasceu duas vezes, em 30 de outubro de 1960, nos subúrbios de Buenos Aires, e em 22 de julho de 1986, na Cidade do México, quando marcou na Inglaterra o maior e mais ilegal dos gols, pelas quartas da Copa do Mundo. O endeusamento de um jogador com as chagas da Guerra das Malvinas ainda abertas. Mas, sem seguida, comprovaria que o êxito não imuniza. “Eu sofro terrivelmente, me destruo e não sou capaz de seguir adiante. É o pior momento da minha carreira”, diria apenas três meses depois, em outubro de 1986, campeão mundial e pai do primeiro filho extraconjungal.
Ainda que o México em 86 e seus títulos inesquecíveis com o Napoli sempre se mantenham como balões de ar quente da felicidade no futebol, Maradona começou a perder várias batalhas. Sua carreira foi desbotando entre a rejeição de seus inimigos (também contados na casa dos milhões), a traição dos seus (até a Camorra napolitana o abandonou), seus testes antidoping positivos e seu vício. A caída do 10, o ventrículo do povo, terminou de convertê-lo em um heroi trágico. Na recordação popular da sua saída por doping da Copa de 1994 ficou uma de suas grandes frases: “Me cortaram as pernas”, talvez porque seria mais leve do que atender outro dos seus pedidos de ajuda desesperados, como: “Não tenho mais estímulo para viver”.
Nos anos seguintes, antes e depois de sua aposentadoria, Maradona começou a flertar com a morte nas atitudes e palavras. “Deixem-me viver minha vida, não quero ser um exemplo. E nem morto encontraria paz. Me usam na vida e encontrarão um modo de fazer isso quando estiver morto”. Internado outras vezes, inclusive em um hospital psiquiátrico, quase morreu pela cocaína no Uruguai em 2000 e em Cuba em 2001.
Como se o fabricante de alegrias alheias também fora um catalisador de lágrimas internas, El Pibe chegou a desejar uma morte diferente ao do libertador argentino, o general José San Martín, que faleceu em 1850 na França. “San Martín teve que morrer lá fora, mas eu quero morrer no meu país”. Cumpriu. Foi Maradona até a sua morte.
Fonte: El País
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