Esse
país tem coisa que é difícil de a gente explicar. Há 25 anos ocorria
uma das maiores queimas de arquivo da história política brasileira. Dois
tiros sem nenhum autor. Dois mortos numa casa supostamente vigiada por
quatro seguranças. Um crime sem castigo e sem solução.
Na
madrugada de 23 de junho de 1996, Paulo César Farias, tesoureiro da
campanha do ex-presidente Fernando Collor em 1989, e sua namorada,
Suzana Marcolino, foram encontrados mortos no quarto de casal na sua
casa de praia de Guaxuma, em Maceió. Um revólver Rossi, calibre 38 (sem
nenhuma impressão digital ou marca de sangue), foi encontrado na cama.
Cada um levou um tiro no peito.
Em
poucas horas, as autoridades de Alagoas se apressaram em divulgar a
"estória oficial". Segundo o então secretário de Segurança Pública, a
tragédia seria um crime passional, no qual Suzana Marcolino teria matado
PC e depois se matado. O Brasil não engoliu a ridícula tese e se
recusava a acreditar que o poderoso chefão de uma rede de corrupção
houvesse morrido pelas mãos da namorada, justamente uma semana antes de
depor no Supremo Tribunal Federal, em uma investigação sobre o pagamento
de suborno a membros do deposto governo Collor.
PC
Farias, obviamente, sabia demais. Anunciara que escreveria um livro
detalhando todo o esquema. Não queria pagar o pato sozinho. Portanto,
precisava ser silenciado.
Três
dias depois do duplo assassinato, por determinação da família de PC e,
com autorização da polícia alagoana (até hoje ninguém sabe por que a
polícia autorizou), a cena do crime foi totalmente desmontada. Colchão,
travesseiros e lençóis foram queimados. Todas as provas residuográficas
foram destruídas descaradamente. Vestígios de sangue, pêlos, fios de
cabelo, pedaços de tecidos seriam rastros que numa análise de
laboratório poderiam mudar a história dessa investigação.
Fortunato Badan Palhares
No
cenário do crime, um novo personagem começava a roubar as atenções, o
obscuro legista Fortunato Badan Palhares, professor da Universidade de
Campinas. Contratado pelo deputado federal Augusto Farias, irmão de PC,
seria ele o responsável pela explicação técnica do crime. Seu laudo se
pautou simplesmente em confirmar a "estória oficial".
Em
depoimento a CPI do Narcotráfico, o ex-governador de Alagoas Geraldo
Bulhões acusou Badan Palhares de ter recebido suborno de R$ 400 mil do
deputado Augusto Farias para cometer o crime de falsa perícia e forjar o
laudo que sustentava a tese de crime passional. Essa CPI investigava o
caso PC por acreditar que "sócios" no crime organizado tenham planejado
sua morte.
George Sanguinetti
A
primeira voz dissonante em relação à "estória oficial" partiu do
coronel da reserva e professor de Medicina Legal da Universidade Federal
de Alagoas, George Sanguinetti. Conforme publicou no seu livro, "O
Dossiê de Sanguinetti", ele concluiu que pela localização do ferimento,
pela posição do corpo de PC, pela estatura de Suzana, e, principalmente,
pelo ângulo do disparo, “a única forma de ela ter apertado o gatilho
era se estivesse levitando”.
"Paulo
César não morreu naquela cama. O seu corpo foi alvejado em outro local,
arrastado até aquele quarto e arrumado naquela posição. Não há crime
passional com único disparo. Crime passional ocorre com tiros múltiplos.
Tiro único naquela distância é coisa de profissional. Antes de ser
alvejada pelo assassino, Suzana Marcolino ainda foi vítima de uma
tentativa de estrangulamento. Ela foi contida na região servical e teve
uma fratura no osso hioide, que fica na base da língua. Após a falsa
autópsia, o professor Badan Palhares levou para Campinas o hioide do
corpo de Suzana para destruir a prova do estrangulamento. O que ocorreu
em Alagoas é escandaloso", afirmou Sanguinetti.
O
legista denunciou também que foi ameaçado de morte e avisado pelo
coronel Manoel Francisco Cavalcante de que Augusto Farias o teria
contratado para matá-lo.
Suzana nunca usava sutiã
Na
cena do crime, Suzana Marcolino apareceu de sutiã, peça que jamais
utilizava nem socialmente, muito menos para dormir. E o mais grave, o
sutiã era de um manequim menor. O detalhe foi percebido pela irmã da
vítima, Ana Luiza Marcolino.
Ao
avistar o corpo de Suzana no Instituto Médico Legal, seu irmão Jeronimo
Marcolino percebeu ainda que além da fratura no pescoço, o corpo
apresentava outras marcas de espancamento, como ferimentos atrás dos
lábios e hematomas na perna.
Genival Veloso de França
Outras
dúvidas começaram a pipocar simultaneamente pela imprensa. Para o
esclarecimento definitivo do caso, foi necessário se fazer uma segunda
perícia. Os corpos de Suzana e Paulo César, que só haviam sido
examinados por Badan Palhares, foram novamente exumados.
Desta
feita, um paraibano traria grande reviravolta ao caso. Convocado pelo
Ministério da Justiça, o célebre legista Genival Veloso de França, fez o
segundo laudo com outros renomados ícones da Medicina Legal no Brasil, a
exemplo de Domingos Tochetto (UFRS) e Daniel Munhoz (USP).
Eis
que a "estória oficial" foi reduzida a pó no segundo laudo. Começando
pelas mãos de Suzana, onde não foram encontrados vestígios de chumbo,
bário e antimônio, elementos químicos que integram as substâncias
iniciadoras da espoleta estão sempre presentes na mão de um atirador.
Outro
dado devastador do segundo laudo é que o tiro contra Suzana foi
disparado a uma distância de 20 cm. Conforme os legistas, quem se mata
encosta a arma no corpo. Também não havia nenhuma marca de sangue na
arma, mas havia no anel de Suzana. Como ela atiraria em si própria e o
sangue não respingaria na arma?
Erro na altura de Suzana
Mas
o detalhe que mais chamou a atenção na chamada “guerra dos laudos” foi a
discussão sobre a altura real de Suzana Marcolino. Badan Palhares fez o
primeiro laudo com uma modelo que media 1,67m. Suzana tinha, na
verdade, 1,57m, ou seja, 10 centímetros a menos. Os legistas Genival
Veloso, Domingos Tochetto e Daniel Munhoz recalcularam então a
trajetória da bala, tomando como base o buraco que ela deixara na
parede, após transpassar o corpo de Suzana.
Concluíram
que se Suzana estava sentada na cama, como indicava Badan, o tiro
deveria ter passado à altura de sua cabeça, e não atingido o pulmão
esquerdo, como o fizera. Com base na altura corrigida, o segundo laudo
concluiu que Suzana não morreu sentada, mas com um joelho apoiado na
cama e se inclinando para a frente, como se estivesse tentando se
defender do atirador.
O tempo estimado entre as duas mortes
Vistoriados
pela então presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Legal, Maria
Tereza Pacheco, o exame dos estômagos de PC e Suzana revelou um
intervalo de aproximadamente quatro horas entre as duas mortes. A
primeira teria ocorrido por volta entre 2h e 3h, enquanto a segunda
ocorreu entre 6h e 7h.
Com
PC Farias já morto, Suzana usou o celular três vezes, gravou três
mensagens (às 3h5, às 4h57 e às 5h) para um amigo dentista de São Paulo,
Fernando Colleoni. A terceira gravação, às 5h, capta uma estranha voz
que em tom ameaçador diz a moça: "o que você tá fazendo? depressa, se
arruma, se arruma". As gravações foram entregues pelo dentista à
polícia. O aparelho de Suzana sumiu da cena do crime e jamais foi
localizado.
Quem entrou dentro do quarto? Quem teria mandado Suzana se arrumar, se PC já estava morto?
Por
que a carteira de identidade de Suzana foi devolvida pela polícia com a
assinatura rasgada? Seria para ser usada no cheque que alegaria a
suposta compra da arma?
Quantos mistérios naquela madrugada.
Caixa-preta humana
É
preciso se dizer que Paulo César Farias não tinha apenas implicações
com o empresariado brasileiro, de que arrecadou muito dinheiro na
campanha e no governo de Collor, mas também tinha ligações com uma
poderosa máfia italiana que atuava no Brasil. A propósito, um desses
mafiosos italianos ligados ao ex-tesoureiro foi assassinado num
apartamento de luxo em São Paulo, seis anos antes de PC, em
circunstâncias idênticas, com um tiro no peito.
PC
era uma espécie de caixa-preta humana, depositário de alguns dos mais
bem-guardados segredos do esquema de corrupção que escandalizara o
Brasil e que, menos de quatro anos antes, em 1992, levara ao processo de
impeachment e à renúncia do ex-presidente Fernando Collor de Mello.
Tesoureiro da campanha de Collor à presidência, PC Farias tornou-se a
eminência parda do governo, organizando um caixa 2 estimado pela Polícia
Federal em cerca de 1 bilhão de dólares. A fortuna era proveniente da
rede de dinheiro sujo que mantinha conexões com a máfia italiana e o
crime organizado internacional.
Conclusão do caso
O
inquérito concluído pelo promotor Luiz Vasconcelos, em agosto de 1999,
decidiu pelo indiciamento de Augusto Farias e dos quatro seguranças que
faziam a guarda da casa de praia de PC em Guaxuma. Entretanto, como
exercia mandato de deputado federal, Augusto contou com a prerrogativa
de ter seu processo remetido à Procuradoria Geral da República (PGR),
que recomendou o arquivamento do caso, aceitando a tese de crime
passional. Com base nisso, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu por
encerrado o processo.
Apenas
os quatro seguranças de PC Farias – os cabos Adeildo Costa dos Santos e
Reinaldo Correia da Silva Filho, bem como os soldados José Geraldo da
Silva Santos e Josemar Faustino dos Santos – foram a júri popular em
Maceió. O julgamento só ocorreu 17 anos depois, em 2013. Na
oportunidade, os jurados concluíram que PC e Suzana foram mortos por uma
terceira pessoa, rejeitando a tese de crime passional, tramada para
encobrir o verdadeiro assassino. Porém, por clemência, figura rara nos
tribunais brasileiros, decidiram absolver os quatro réus.
O
assassinato de PC Farias foi a maior queima de arquivo da história do
Brasil. Suzana Marcolino era apenas a pessoa errada, no lugar errado. O
autor do crime permanece desconhecido após 25 anos. Nada aconteceu com
os responsáveis pela estória oficial.
“Não
tenho dúvidas de que havia mais alguém na cena do crime, além de PC e
Suzana. Foi essa terceira pessoa quem matou os dois”, assegurou o
jornalista Lucas Figueiredo, autor do livro Morcegos Negros: PC Farias,
Collor, Máfias e a História que o Brasil Não Conheceu.
Crime perfeito ou investigação mal feita?
"O
que a família de Suzana Marcolino sonha é que um dia tudo seja
descoberto, acreditamos em Deus que a verdade ainda vai vir. Não
suportamos mais isso". (Ana Luiza Marcolino)
Quem matou PC Farias e Suzana Marcolino? 25 anos se passaram e o mistério continua.
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